Sozinha, informatização se mostra insuficiente para tornar Justiça mais célere

Pesquisa investiga reflexos da adoção de processos digitais em tribunais e na atuação de advogados.

Fachada do Supremo Tribunal Federal (STF) com estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, em primeiro plano.
De modo bilateral, estudo aponta as vantagens e desvantages na digitalização dos processos judiciais. (Foto: Agência Brasil)

A maioria das ações judiciais já migrou de papeis e pastas físicas para o universo digital. Mas elas conservam exigências que, ao serem repetidas exaustivamente, podem gerar obstáculos para que a análise de processos se torne mais célere.

Uma boa parcela delas são classificadas como burocráticas no estudo “Informatização judicial e efeitos sobre a eficiência da prestação jurisdicional e o acesso à Justiça”, elaborado pelo Insper com apoio do Instituto Betty e Jacob Lafer.

No trabalho, Luciana YeungPaulo Eduardo Alves da Silva e Carolina Osse afirmam que, apesar do avanço do formato eletrônico no país –pulou de 11,2% em 2009 para 90% em 2019–, ainda não houve resposta significativa de melhoria na duração dos processos, considerando o tempo de baixa e o de sentença.

A informatização, acrescentam os pesquisadores, mostra-se “inócua se o processo precisa seguir uma liturgia burocrática e não racional”. O trio também examinou as repercussões da disseminação dos processos digitais na operação de advogados e na relação deles com clientes.

Para compor as entrevistas, além entrevistas, seus autores recorreram a métodos de inteligência artificial e à aplicação de questionários eletrônicos. Confira a seguir os principais resultados.

Multiplicidade de sistemas

Há pelo menos nove sistemas de processo eletrônico em operação nos tribunais de justiça estaduais do país. Essa diversificação repete-se em cortes federais e superiores e pode ser maior, uma vez que um mesmo sistema dá origem a diferentes versões.

O quadro se contrapõe à integração defendida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, em 2013, instituiu o Processo Judicial Eletrônico (PJe), um software gratuito e de código aberto, como padrão para os tribunais.

A unificação é vista como uma forma de otimizar o uso de recursos financeiros e humanos, aperfeiçoar a comunicação entre as cortes e facilitar o acesso ao Judiciário –advogados, por exemplo, teriam de recorrer a um único sistema.

Entrevistas realizadas para o estudo demonstram resistência a esse plano. Um juiz de uma corte disse que não cabe ao CNJ “ser um fornecedor de produto”. Gestores de outras avaliam que migrar para o PJe seria um retrocesso. Cita-se ainda que a mudança implicaria custos com treinamento e adaptação ao novo sistema.

Para os críticos, a melhor alternativa seria investir na interoperabilidade dos sistemas existentes.

Efeitos no andamento processual

Ao analisarem todas as movimentações de 20 mil ações dos tribunais de Justiça de São Paulo (TJSP) e do Rio de Janeiro (TJRJ) e nos regionais federais da 2ª Região (TRF2ª) e da 3ª Região (TRFª), os pesquisadores constataram uma profusão de procedimentos praticados durante a tramitação de casos.

Para apurar com que frequência ocorreram esses procedimentos –também chamados de movimentações ou andamentos–, eles definiram que a execução de três deles em uma mesma ordem, por pelo menos 20 vezes, seria considerada uma rotina.

Resultado: foram identificadas 804 rotinas no TJSP, 875 no TRF3ª, 1.157 no TJRJ e 1.562 no TRF2ª. A maioria delas, nos quatro tribunais, exigiu menos de um dia para ser executada.

Além disso, apesar da informatização do sistema, quase todas precisaram da intermediação de um servidor da área administrativa para serem efetuadas.

Todas essas informações foram extraídas de bases de dados abertas por meio de “text mining” (mineração de texto, em português). Utilizando processamento de linguagem natural, o método permite que textos sejam transformados em bancos dados, e, assim, analisados.

Aleatória, a amostra consistiu em processos ajuizados em primeira instância a partir janeiro de 2017 e abrangeu movimentações ocorridas até outubro de 2020.

Com base nos dados, os pesquisadores concluíram que, em geral, processos levam muito tempo para ter um desfecho por estarem condicionados a movimentações de curta duração repetidas diversas vezes, e não em razão de movimentações de longa duração.

Para eles, a morosidade gerada pela exigência do cumprimento de rotinas talvez seja “o maior dos obstáculos à maior celeridade no processo judicial pós-informatização”.

Alterar esse fluxo, no entanto, depende de mudanças de normas do Código de Processo Civil, o que não cabe à gestão dos tribunais.


Imagem mostra movimentações em processos eletrônicos e quem as executa, em quatro tribunais do Brasil. No Tribunal de Justiça de São Paulo, 5.000 processos acumulam 729 tipos de andamentos, que foram efetuados 161.977 vezes. Destes, 75% deles foram executados por servidores, 13%, por advogados e 11%, por magistrados. Os andamentos mais recorrentes são certidão de publicação expedida, remetido ao Diário da Justiça Eletrônico e petição juntada. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 5.000 processos acumularam 338 tipos de andamentos, que foram efetuados 185.466 vezes. Destes, 76% foram executados por servidores, 11%, por advogados e 11%, por magistrados. Os andamentos mais recorrentes são ato ordinário praticado, conclusão ao juiz e recebimento. No Tribunal Regional Federal da 3ª Região, 5.000 processos acumularam 1.142 tipos de andamentos, que foram efetuados 145.518 vezes. Destes, 83% deles foram efetuados por servidores, 14%, por advogados e 3%, por magistrados. Os andamentos mais recorrentes são intimação eletrônica, decurso de prazo e petição. No Tribunal Regional Federal da 2ª Região, 5.000 processos acumularam 232 tipos de andamentos, que foram efetuados 276.858 vezes. Destes, 75% deles foram efetuados por servidores, 14%, por advogados e 11%, por magistrados. Os andamentos mais recorrentes são ato ordinário, autos com (conclusão) juiz para despacho/decisão e recebimento do juiz com despacho/decisão. Fonte: Yeung, Silva e Osse (2021).

 

Impacto para advogados

De um lado, o avanço da informatização facilitou tarefas, permitindo atender mais casos e constituir escritórios menores, tanto em equipe quanto em estrutura de espaço físico.

Advogados que decidem trabalhar em casa podem, por exemplo, recorrer a profissionais que atuam numa espécie de base de apoio e recebem valores baixos para praticar atos pontuais no processo.

De outro lado, exige-se mais investimento em tecnologia e no aperfeiçoamento profissional para operar novas ferramentas. Tudo isso para se manter relevante num mercado em que a competição por clientes se acirrou.

Outro efeito colateral é a necessidade de elevar a produtividade, a fim de compensar a queda do valor dos honorários. Um dos entrevistados disse haver relatos da cobrança de R$ 20 por processo.

 

Gráfico de barras mostra uso do processo eletrônico em comparação ao físico, segundo advogados. Vantagens: é mais rápido (torna o processo mais célere), com 72,7% de menções; é mais fácil de se trabalhar, com 69,7% de menções; é menos custoso, com 58,6% de menções; é mais transparente, com 53,5% de menções; melhorou a relação com o cliente, com 26,3% de menções. Desvantagens: tem muitos problemas técnicos, com 45,5% de menções; nada, só tem vantagens, com 34,3% de menções; membros do Judiciário têm dificuldade para lidar com o sistema, com 14% de menções; é mais difícil de usar, com 13% de menções; gera muito trabalho, com 6% de menções. Fonte: Yeung, Silva e Osse (2021).

Reflexos para clientes

Uma vez que podem acessar o andamento de processos judiciais por si sós, clientes ganharam mais informações para monitorar e avaliar o serviço prestado por advogados.

Empresas se veem ainda com a opção de internalizar a assistência jurídica ou ampliar seus departamentos dedicados a essa atividade, em vez de contratar escritórios externos. Com isso, reforçam o controle acerca de dados sobre seus casos.

Clientes se beneficiaram ainda da redução de valores cobrados, decorrentes da maior concorrência e da simplificação de processos.

Gráfico mostra reflexos do processo eletrônico para o bem-estar do cliente, segundo advogados. Vantagens: trouxe mais facilidade no acesso, consulta e/ou atendimento, com 70,7% de menções; trouxe mais transparência, com 62,6% de menções; reduziu custos, com 48,5 de menções. Desvantagens: aumenta ansiedade e inquietação em relação ao andamento, com 53,5% de menções; nada, só trouxe vantagens, com 40,4% de menções; gera mais dificuldades para o acesso e/ou atendimento, com 1% de menções. Fonte: Yeung, Silva e Osse (2021).

 


(Fonte: Insper Conhecimento)