“Tudo indica que estamos criando outras variantes do coronavírus no Brasil”, alerta virologista da USP

Responsável pela análise da variante britânica encontrada no Brasil, José Eduardo Levi afirma que é preciso ampliar o sequenciamento para detectar mutações mais agressivas do Sars-Cov-2.

"Estamos colaborando para criar linhagens mais transmissíveis". O alerta vem do virologista José Eduardo Levi, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-SUP). Levi foi o responsável pela descoberta, no fim de dezembro, dos primeiros dois casos da variante britânica do novo coronavírus na América Latina. A mutação possui oito alterações na proteína Spike, que interage com um receptor das células humanas e abre caminho para que o vírus invada o corpo e cause a Covid-19. Mudanças nesta proteína podem não apenas afetar a transmissibilidade do vírus – como aconteceu com a mutação inglesa –, mas também torná-lo mais resistente a vacinas já desenvolvidas por diferentes laboratórios no mundo.

Nesta semana, o virologista, que estuda o comportamento da variante inglesa (B.1.1.7) no Brasil, recebeu amostras de uma outra mutação (B.1.1.28), a mesma detectada em turistas japoneses que contraíram a Covid-19 em Manaus. Nela, foram encontradas dez alterações na proteína Spike. Ainda que, neste caso, não se tenha comprovado uma maior capacidade de transmissão nem uma possível resistência às vacinas, a possibilidade de que o coronavírus continue circulando e evoluindo acende um alerta em um momento decisivo para a imunização:

"Este é um momento crítico. A detecção de variantes pode colocar dúvidas sobre o desempenho dos testes de diagnóstico, e, principalmente, sobre as vacinas, que é estratégia mais importante", alerta o virologista.

Para Levi, o contexto atual exige algumas medidas sérias para a população e a ciência. Primeiramente, é preciso diminuir a circulação de pessoas – um "adubo" para a mutação do vírus, segundo ele. Porém, tão importante quanto, seria ampliar e tornar mais frequentes os sequenciamentos dos vírus em atividade no País: "Só assim poderemos saber se vacinas adotadas terão a mesma eficácia nessas variantes. E, caso suspeitemos uma possível perda, poderemos atualizá-la em tempo hábil". 

O pesquisador ressalta também que, com o baixo índice de sequenciamento no País, a mutação encontrada na capital do Amazonas pode ser apenas a ponta do iceberg de uma série de variantes que já teriam sido criadas em solo brasileiro: "Em Manaus, tudo indica que criamos uma variante brasileira. Mas, com certeza, estamos criando outras, porém, só saberemos quando sequenciarmos", afirma.

Confira abaixo a entrevista de José Eduardo Levi à Agência Einstein:

  1. O que se sabe até o momento sobre a mutação do novo coronavírus encontrada em Manaus?

Amostras de laboratórios enviadas para o consórcio USP-Oxford [que analisa sequenciamentos do novo coronavírus no Brasil] indicam que a variante descoberta no Japão teria mesmo surgida em Manaus. Eu não faço parte do consórcio, mas utilizei as amostras da variante manauara para comparar com a mutação britânica.

Manaus é um caso que interessa o mundo inteiro. Houve muitos casos logo no início da pandemia, chegando a uma soroprevalência de 60%, o que para muitos modelos seria a imunidade de rebanho. Porém, meses depois, os casos explodem outra vez. O que aconteceu com o rebanho? Seria uma segunda onda infectando os 40% remanescentes ou seria reflexo de uma nova variante mais transmissível? Por enquanto, não sabemos, mas é provável que seja a segunda hipótese. Alguns dados constatam que os novos casos que acontecem em Manaus não são de reinfecção. Parece ser então uma situação parecida com a do Reino Unido, mas isso ainda precisa ser analisado.

  1. A variante brasileira poderia ser mais transmissível, como a britânica?

A variante B.1.1.28 ainda é muito recente. O que sabemos é que, nela, foram encontradas dez mutações na proteína Spike, enquanto, na britânica, foram oito. Em teoria, essas alterações na proteína sugerem que o vírus mutado pode ter comportamento diferente, uma vez que ela é a porta de entrada do vírus. Mas, por ora, não podemos dizer que nenhuma das variantes encontradas no Brasil são mais transmissíveis. Sobre a B.1.1.7 [britânica], a única prova de que ela seria mais transmissível é um estudo inglês constatando que, por ser cada vez mais frequente, essa linhagem também seria mais transmissível. Mas em relação às amostras brasileiras da B.1.1.7, por enquanto, estamos em fase de testes, e imagino que, no fim do mês, teremos uma ideia melhor se ele realmente está sendo mais transmissível no Brasil.

Hoje o que mais me preocupa é a variante de Manaus, pois é provável que tenhamos mais casos dela do que a britânica por causa do fluxo de pessoas. O problema é que não conseguimos enxergar isso por causa da baixa taxa de sequenciamento que temos feito aqui. Precisamos de uma vigilância molecular melhor para controlar as mutações.

  1. As mutações do vírus podem afetar a eficácia da vacina?

Há um dado da Pfizer mostrando que a vacina conseguiu neutralizar um vírus artificial com uma das mutações mais importantes da variante britânica.  Isso é bom, mas ainda não vi nenhum estudo em laboratório que tivesse neutralizado o vírus em si. Temos que ver se quem foi vacinado acabou infectado pela nova variante. Se isso acontecer, é um sinal de que a B.1.1.7 pode resistir à imunização.

  1. A baixa a adesão ao isolamento no Brasil pode contribuir para a criação de linhagens mais transmissíveis ou resistentes?

Certamente estamos colaborando para criarmos linhagens mais transmissíveis. Basta fazer o seguinte raciocínio: se você coloca mais pessoas aglomeradas, umas com o vírus de menor transmissão e outras com a variante mais transmissível, quem é que vai sair predominante? Será a segunda linhagem. E deve ter sido isso que aconteceu em Manaus. O isolamento permite que você não dê chance ao vírus. Se a variante não se espalha, é mais fácil que ela morra ou não evolua para outras mais resistentes.

  1. O que é preciso fazer para controlar as mutações do vírus neste momento?

É preciso que haja monitoramento constante, que se adiante ou caminhe junto com o vírus. Todos os vírus terão variantes, mas só conseguiremos conhecê-las, e descobrir onde elas estão ocorrendo, se fizermos o sequenciamento. Só assim é possível constatar com rapidez o surgimento de uma variante mais agressiva.

  1. O índice de sequenciamento no Brasil é baixo em comparação a países desenvolvidos, e mesmo mais baixo do que outras nações emergentes, como Índia e África do Sul. Por que não conseguimos fazer um monitoramento melhor do vírus?

Eu acredito que no Brasil haja tantos sequenciadores quanto no Reino Unido, mas temos mais entraves, como o financiamento, dificuldades para importação de reagentes e os próprios recursos humanos. Temos aqui uma iniciativa bem legal, que é o grupo liderado pela Ester Sabino [pesquisadora do IMT-USP]. Eles têm uma técnica de sequenciamento muito rápida. E isso, numa epidemia, faz muita diferença.

(Fonte: Agência Einstein)