Costanza Pascolato reflete sobre a trajetória do requinte na Itália
Criada no Brasil desde a infância, a papisa da moda nacional relembra suas histórias em Roma, conta como se aproximou de Giorgio Armani e, aos 86 anos, comenta o caminho de volta à Europa feito pela família.
A papisa da moda nacional relembra suas histórias em Roma e conta como se aproximou de Giorgio Armani.
São duas da tarde de uma segunda-feira de fevereiro em São Paulo e Costanza Pascolato abre a porta de seu apartamento vestida de branco. Uma bata de algodão e uma calça justa bastam para deixá-la no topo da elegância em casa, um cenário de filme italiano. Seu sorriso acolhedor vem acompanhado de uma oferta irresistível naqueles dias de calor escaldante: um copo de água gelada trazido pelas mãos dela mesma, a papisa da moda. A luz natural ilumina a sala de paredes vermelhas, pintadas com matizes de tons rubros resistentes à água, típicas dos palácios venezianos, tais como o que ela morou na infância. Sempre é encantador rever a decoração de Marilu Beer, a amiga já falecida que liderou a reforma de sua casa para receber móveis e peças seculares de família, herdados da mãe, Gabriella Pascolato. “Foi mais fácil me desfazer dos meus móveis quando perdi minha mãe. Jamais poderia me desfazer das peças de família”, ela comenta, lembrando histórias dos quadros, escrivaninhas, livros e lustres. “Marilu cuidou de tudo com amor.” Nascida em Siena em 1939, Costanza chegou pequena ao Brasil, após passar por um campo de refugiados e uma longa viagem de navio com os pais durante a Segunda Guerra Mundial. A italiana mais brasileira do país falou a Robb Report Brasil.
Quais são suas melhores lembranças de Roma?
Eu era pequena e a gente tinha casa em Roma, em Torino, em Veneza, em Siena, na fazenda do meu avô. Em Roma, morávamos na Villa Borghese, perto do parque. Meu pai me deu um pônei. Eu só lembro disso. Depois teve a guerra e foi difícil. Viemos para o Brasil. Eu me recordo mais de Roma quando voltei, aos 15 anos, e foi maravilhoso. Era a época do cinema. Tinha o Cinecittà (estúdios italianos). A gente ficava em um hotel perto da Via Veneto. Eu andava a pé e tinha todos aqueles atores: Errol Flynn, Ava Gardner. Eu ficava boquiaberta. As atrizes de Hollywood, naquela época, nos anos 50, e estavam todas na Itália. Tinha a Anita Ekeberg, de La Dolce Vita, e atores dos outros filmes do Fellini. E no pós-guerra, aquilo era o auge da festividade mundial. Nos Estados Unidos, em Hollywood, não era assim. Paris e Londres não eram assim. Roma não tinha uma importância política, mas era o centro das filmagens dessa época. Cineastas americanos usavam o Cinecittà, porque era mais barato.
Você viveu em Roma e Veneza, mas nasceu em Siena, certo?
Sim. Foi no início da guerra. Em setembro, os alemães invadiram a Polônia. Eu nasci em 19 de setembro. Eles falaram para o meu pai: “É melhor vocês irem para o norte, nas florestas”. Roma tinha ficado perigoso. Tinha combate. Em Siena, o meu avô tinha essa propriedade maravilhosa.
Acha possível explicar um pouco a história do requinte a partir da Itália?
A Itália é um país basicamente artesão. Desde sempre. E nunca foi um país só. Você sabe, é uma série de regiões. Há maneiras de ver, não só a arquitetura, mas como eles criaram arte. E a história dos Médici é clara. Eles eram uma dessas famílias que saíram do interior, perto de Florença. Começaram a conquistar as cidades e foram ficando ricos. Pense que os romanos inventaram o sistema bancário. Eles inventaram os soldos. Os soldados ganhavam dinheiro para viver em guerra. Devolviam com lucro. Roma tem muitas camadas. Desde a época romana, havia um modelo de civilização, num tempo em que todo mundo era meio selvagem. Isso tornou a estética mais refinada. Roma já tinha a filosofia, um tipo de governo, a expansão de um império. O que Roma construiu na Europa é impressionante. Para começar, eles gostavam de água, que na Idade Média eliminaram de novo.
Então tinha o banho público. Eles inventaram os dutos de água. Tivemos, assim, a sofisticação dos projetos romanos. Muito antes do ano 1000, já começa o requinte. Porque (requinte) é cultura.
E a moda italiana nesse espectro do requinte?
A moda italiana como a gente entende hoje foi estruturada a partir do pós-guerra. Isso aconteceu com o prêt-à-porter depois da Segunda Guerra Mundial. Os centros de indústria de tecido na Itália e na França pararam com a guerra. Todo mundo fazia roupa em casa. O pós-guerra começou a formar essa indústria da moda. Os veículos especializados começaram a surgir depois da Segunda Guerra, e passaram a divulgar a moda regularmente. Mas o que na Itália é predominante até hoje é o artesanato. Eles são fenomenais nisso. Ou seja, é a maneira como as bolsas de luxo de todas as marcas do mundo são feitas na Itália, em certas regiões.
O artesanato, o fazer manual, é superlativo. Inclusive, os franceses tinham começado a comprar pequenas indústrias familiares. É assim que funciona na Itália, com tradição de qualidade para levar para outros países. Agora, olhando sob o aspecto mais moderno do requinte, a moda italiana tem alguns nomes importantes, que inovaram no sentido do que é contemporâneo. Uma das pessoas mais importantes na moda italiana é o Giorgio Armani.
O que torna Giorgio Armani tão especial na sua visão?
Ele deu uma desestruturada na alfaiataria masculina. Começou com o masculino de um jeito que eu cheguei a ver. Desestruturou o terno que era feito do mesmo jeito desde os anos 20. Ou seja, era um “desestruturado” que a gente não tinha conhecimento na Europa, na época. Porque a roupa europeia sempre foi feita numa moulage (técnica de modelagem tridimensional que permite criar peças de vestuário diretamente sobre um manequim). E a moulage vinha durinha do começo do século. Então, as revoluções foram acontecendo nos anos 20. E também aconteceu a “desestruturação” da roupa feminina, a exemplo da própria Chanel. O Giorgio, que foi uma revolução dos anos 70 e 80, tem influência até hoje. A gente o vê como uma marca consagrada, que tem um estilo até meio careta, dizem alguns, mas eles não entendem a estrutura. Não tem um casaco Armani no armário que você vista que não caia direito. É uma autoria dele. Ele até me explicou, porque a gente conversou bastante. Eu tive essa sorte.
E como foi?
Comecei a trabalhar em 1970. Trabalhava para a editora Abril. Tive a chance e o privilégio de fazer uma série de estágios na Elle francesa nos anos 70 e 80. Em 1982, as editoras francesas disseram para mim: “Vamos para Milão, na semana de moda, conhecer uma pessoa que disseram que está fazendo uma alfaiataria muito interessante”. Era no hotel Duomo, que nem existe mais, e a pessoa era o Giorgio Armani. Ele tinha estudado medicina da Universidade de Milão e era vitrinista da (loja de departamentos milanesa) La Rinascente (onde começou oficialmente a carreira de Armani na moda). E ele estava fazendo uma linha masculina. Giorgio mostrou as peças. Nós ficamos bobas. Porque era desestruturado, com aquele jeitão. Você via o gesto do homem mais solto dentro daquela roupa. Você desestrutura a roupa, e aí vai se movimentando de forma diferente.
"A Itália é um país artesão. O artesanato é superlativo".
E você o encontrou depois?
Continuei trabalhando para a revista Claudia, e quando voltei à Itália pedi para Giorgio: “Olha, eu queria fazer uma reportagem sobre suas coisas”. Ele já tinha um certo nome, e me convidou. E foi de uma delicadeza, falou comigo pessoalmente e me deu acessórios para tudo. Também havia uma esperteza. Porque me deu acessórios que ele achava que eram bons. Nessa ocasião tivemos espaço para uma conversa. Ele disse: “Todo mundo erra quando faz casaco”. Você tem que cavar aqui (nas costas) o que vai ficar certo para o corpo da pessoa. Esse é um dos segredos. É a questão da cava. Ele corta de um outro jeito. A cava é fundamental para o caimento da roupa. Giorgio me dizia: “Sabe, gosto do jeito como você se veste”. Eu falei que gostava do Kenzo, e que misturava com roupinhas mais baratas. Ele ficou meu amiguinho. Descobrimos amigos em comum. Passou a me convidar para a casa dele, para festinhas. Giorgio continua morando no mesmo lugar em Milão. Está bem aos 90. Ele ainda vai no backstage ver se as modelos estão bem maquiadas.
Quando você esteve com ele pela última vez?
Foi antes da pandemia. Sempre vou naquele restaurante dele em Milão, o Nobu (restaurante japonês). E aí ele me viu. Como estou sempre usando esses óculos escuros, ele disse: “Cadê o olho?” Então tirei os óculos. “Ah! Ainda estão bem”, ele disse. Porque achava o meu olho bonito. Agora é tudo pintado. Seus olhos são lindos. Imagina, era outra coisa. Eu era bonita mesmo. Enfim,
ele achava bacana. Foi a última vez que ele me reconheceu depois de anos que a gente não se via.
E como você vê a importância do Valentino?
Valentino foi o único que começou em Roma, além da Fendi, que era uma marca de peles. Foi sempre esperto, mas sobretudo o Giancarlo Giammetti (foi marido de Valentino), que criou a estrutura. O talento é do Valentino, mas Giancarlo indicou como eles podiam ser. E trabalhavam esse lado social, que foi superlegal.
Sua filha, Consuelo Blocker, mora em Florença. Seus netos moram em Milão e Londres. Como foi o caminho de volta da família para a Europa?
Isso é estranho, né? (risos) Nasci lá, vim para cá. Tive duas filhas de um senhor meio brasileiro, meio americano. Elas quiseram estudar nos Estados Unidos. Com 18 anos, Consuelo ficou na América. Alessandra não ficou muito tempo. Consuelo se formou na Brown University e foi trabalhar em Nova York. E lá encontrou o marido, que era de onde? Florença. O casamento deles foi em Florença há 30 anos. E ela mora lá. Comecei a ir todos os anos para a Itália.
Como você pensa a vida? Quais são seus sonhos?
Aos 86 anos, a gente só pensa em estar bem. Quero estar bem para continuar fazendo coisas de que eu gosto. Gosto de trabalhar.
Você me disse uma vez que é “La Résistance”. O que significa hoje ser “La Résistance”?
Estamos vivendo em um mundo tão esquisito. Desde que te falei que sou “La Résistance” em 2019, tudo era um pouquinho mais normal. Depois da pandemia, parece que o mundo teve uma injeção de aceleração. A tecnologia cresceu. As pessoas começaram a ficar mais neuróticas, no geral, tem a questão política no mundo. Como já vivi esses 80 anos e cada fase, lembro mais ou menos como era. A gente tinha mais tempo. O tempo serve para aperfeiçoar, aprender, aprofundar. Quando uma coisa dava errado, eu insistia e dava certo. Hoje, se dá errado uma vez, há poucas chances de fazer dar certo daqui a pouco. Essa aceleração é excessiva. Sobretudo para as novas gerações. Não é um mundo fácil de viver. E nós somos privilegiados.