Brasil vê oportunidade para repatriar cientistas dos EUA

Cortes de recursos e demissões em massa promovidas pelo governo Trump criaram um cenário menos favorável à permanência de pesquisadores brasileiros no país.

close-up-blurry-scientist-holding-petri-dishPesquisadores no Brasil começam a enxergar uma oportunidade para “repatriar” cientistas que trocaram o país pelos Estados Unidos nos últimos anos. (Foto: Freepik)

Em meio ao turbilhão de incertezas que passaram a rondar o futuro da ciência americana sob o governo de Donald Trump, pesquisadores no Brasil começam a enxergar uma oportunidade para “repatriar” cientistas que trocaram o país pelos Estados Unidos nos últimos anos. “Se o Brasil tiver uma visão estratégica, agora é o momento”, disse ao Jornal da USP a biomédica Helena Nader, professora da Universidade Federal de São Paulo e presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “Porque vai ter muita gente querendo voltar; especialmente os jovens.”

Nader não está sozinha nessa avaliação. Vários pesquisadores consultados para essa reportagem levantaram espontaneamente a possibilidade de atrair talentos de volta ao País, “aproveitando-se”, por assim dizer, da situação complicada que vive a ciência nos Estados Unidos desde o início da gestão Trump, em 20 de janeiro. Cortes de verbas, demissões em massa, discursos negacionistas e a adoção de medidas vistas como hostis às universidades, à liberdade de pesquisa e à presença de imigrantes no país criaram um cenário menos acolhedor para estrangeiros que buscam construir uma carreira científica nos EUA.

Grande parte da força de trabalho da ciência americana vem de outros países, e grande parte desses estrangeiros não possui vínculo permanente de emprego no país. São alunos de pós-graduação, pós-doutorandos e pesquisadores em início de carreira que são recrutados pelas instituições para trabalhar em projetos específicos e cuja remuneração provém majoritariamente — ou até integralmente — das verbas de financiamento desses projetos (grants, em inglês).

“Acho que vai ter um êxodo muito grande, de gente saindo do país ou indo para o setor privado”, se as perspectivas de cortes no fomento público à pesquisa se confirmarem ao longo dos próximos meses e anos, segundo um pesquisador brasileiro que vive nos EUA e foi um dos mais de 1 mil funcionários demitidos sem aviso prévio dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, em inglês), em fevereiro.

As demissões foram temporariamente revertidas em março por um juiz federal de Maryland — Estado onde fica a sede do NIH —, mas o governo Trump apelou da decisão. O futuro dos funcionários, portanto, segue indefinido. “Essa demissão pode ser revertida hoje, mas nada garante que eu não vá ser demitido de novo daqui a dois ou três meses”, ponderou o pesquisador brasileiro. Ele conversou com o Jornal da USP sob a condição de que sua identidade fosse mantida em sigilo. Dependendo do que acontecer daqui para frente, ele cogita retornar ao Brasil. “Não é só pelo meu emprego, é por toda uma situação de financiamento da pesquisa nos Estados Unidos que está sofrendo um choque.”

O NIH é a maior agência de fomento à pesquisa biomédica do mundo, com um orçamento de US$ 47 bilhões. Só nos últimos dois meses, a nova diretoria do instituto já suspendeu ou cancelou centenas de projetos, e revogou ou congelou centenas de milhões de dólares em financiamento à pesquisa. A lista de projetos vetados inclui pesquisas sobre temas como gênero, hesitação vacinal, prevenção do HIV e o impacto das mudanças climáticas na saúde. Estudos sobre a pandemia de covid-19 também estão sendo descontinuados, sob o pretexto de que “não são mais necessários”, segundo reportagens da revista Nature e Science.

Já os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) planejam cortar mais de US$ 11 bilhões em financiamento para programas de resposta à pandemia, segundo reportagem da NBC News. Em janeiro, pesquisadores da agência receberam ordens de não colaborar mais com a Organização Mundial da Saúde (OMS) — da qual os EUA se retiraram em janeiro.

Os cortes atingem diversas agências e fazem parte de uma grande investida do governo Trump para eliminar gastos e reduzir o tamanho do Estado americano. Seus efeitos estão sendo sentidos também nas universidades, que dependem fortemente de recursos públicos federais para financiar suas atividades de pesquisa. O NIH anunciou planos para reduzir drasticamente o pagamento de “custos indiretos” de projetos (referentes a despesas operacionais e administrativas), que são vitais para as universidades e outras instituições de pesquisa que abrigam esses projetos.

A retórica trumpista é pouco amigável às universidades, que é onde grande parte da ciência americana é produzida. Em 2021, o então candidato a senador e hoje vice-presidente J.D. Vance fez um discurso em uma conferência na Flórida em que classificava as universidades como “inimigas” do movimento conservador americano. “Se qualquer um de nós quiser fazer as coisas que queremos fazer pelo nosso país e para as pessoas que vivem nele, nós temos que honestamente e agressivamente atacar as universidades desse país”, discursou Vance.

Trump descreve as universidades como instituições que promovem “doutrinação esquerdista” e promete cortar recursos federais (incluindo verbas de pesquisa) daquelas que desafiarem suas ordens executivas. Pelo menos 50 universidades — incluindo algumas das mais prestigiosas do país, como Havard, Cornell e Yale — estão sendo investigadas pelo governo por suas políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI).

“Tiro no pé”

“A ciência americana vai perder protagonismo”, avalia Helena Nader, da Academia Brasileira de Ciências. “Para o resto do mundo, pode ser uma grande oportunidade. Não é o ideal, claro. Seria bom que a ciência americana continuasse firme e forte; mas é uma opção que eles fizeram”, completou ela, referindo-se à eleição de Trump.

“É uma burrice; é um tiro no pé dos Estados Unidos”, diz o pesquisador Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Eles estão diminuindo o protagonismo deles em nível global e entregando de bandeja para outros países ocuparem esse espaço.”

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, na década de 1940, os EUA se consolidaram como maior potência científica e tecnológica do planeta, com forte investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) — tanto no setor público quanto privado. Os gastos totais com P&D no país ultrapassam US$ 800 bilhões por ano, segundo dados compilados pela Fundação Nacional de Ciências (NSF) dos EUA.

Essa liderança americana, porém, vem sendo desafiada fortemente pela China nos últimos anos, como demonstra o caso do sistema de inteligência artificial DeepSeek e as várias missões espaciais (não tripuladas) enviadas pelo país à Lua e à Marte, entre outros feitos tecnológicos notáveis. O gigante asiático turbinou seus investimentos em P&D nas últimas duas décadas e desde 2016 já publica mais artigos científicos (ou papers, no jargão técnico da área) do que os Estados Unidos, segundo os dados da NSF.

Ainda que pairem questionamentos sobre a qualidade e a relevância de parte dessa produção acadêmica chinesa, não há dúvidas de que a China é hoje uma superpotência científica e tecnológica em escala global; já superando o impacto dos EUA em algumas áreas de pesquisa, como química, engenharia e ciências da computação.

Uma área em que os EUA ainda lideram com folga é a das ciências biológicas e biomédicas; mas mesmo essa primazia poderia estar ameaçada a depender dos cortes que vierem a ser implementados no NIH, principalmente. “Se os Estados Unidos pararem de financiar pesquisa pra valer, isso vai mudar o eixo da ciência no mundo. O centro vai migrar para China e Europa”, avalia o geneticista Carlos Menck, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

Em uma enquete realizada pela revista Nature com pesquisadores nos Estados Unidos, mais de 1,2 mil (75% dos respondentes) disseram que estão considerando deixar o país por causa das interferências do governo Trump na ciência. A proporção foi ainda maior entre os pós-graduandos (jovens pesquisadores vinculados a programas de mestrado e doutorado): de um total de 690 respondentes, 548 estão cogitando sair dos Estados Unidos. Os destinos de preferência seriam Canadá e Europa.

O Brasil é um país que também poderia se sobressair nessa reconfiguração da geopolítica científica mundial, tanto no sentido de atrair talentos desgarrados quanto de ocupar espaços de pesquisa deixados em aberto pelos Estados Unidos. Resta saber se o país terá os recursos e o empenho necessários para fazer isso.

“Espero que a gente consiga, no mínimo, atrair os nossos pesquisadores de volta”, disse Thelma Krug, pesquisadora aposentada do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) do Brasil e ex-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC).

Repatriação em curso

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal agência federal de fomento à pesquisa do Brasil, lançou em abril de 2024 um programa ambicioso de repatriamento de pesquisadores, chamado Conhecimento Brasil, com investimento previsto de R$ 822 milhões para “atração e fixação de talentos”. O programa vai pagar bolsas de R$ 10 mil a R$ 13 mil por mês, durante cinco anos, para profissionais com mestrado ou doutorado que concluíram sua formação recentemente no exterior ou que possuem vínculo com instituição fora do País e queiram retornar ao Brasil para desenvolver pesquisas dentro de instituições ou empresas brasileiras.

Mais de 1,5 mil pesquisadores submeteram propostas e 574 foram selecionados para receber o financiamento, segundo o resultado preliminar divulgado em 28 de fevereiro pelo CNPq. O número de concorrentes superou em muito as expectativas da agência, segundo o cientista Ricardo Galvão, que é professor aposentado do Instituto de Física da USP e preside o CNPq desde janeiro de 2023. Cerca de 10% das propostas aprovadas vieram de pesquisadores nos Estados Unidos.

Em entrevista ao Jornal da USP, Galvão disse que o número de propostas oriundas dos EUA provavelmente seria maior se o programa tivesse sido lançado neste ano, durante o governo Trump. “Acredito que teria muito mais candidatos”, afirmou. A agência já estuda a possibilidade de prosseguir com o programa. “Eu até pensei que iríamos parar um pouco com o Conhecimento Brasil, mas vamos dar continuidade, para tentar a atração de mais brasileiros para o Brasil.”

A possibilidade de prorrogação deverá ser discutida na reunião de abril do conselho do Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que é de onde vêm os recursos para o programa. Do total de R$ 822 milhões disponíveis para fins de repatriação, apenas R$ 574 milhões foram contemplado nessa primeira chamada. “Parte dos recursos (remanescentes) serão usados para a fase de reconsideração e para eventual prorrogação dos projetos contratados. Recursos eventualmente não utilizados poderão ser direcionados à próxima edição da Chamada Conhecimento Brasil”, informou o CNPq, por meio de sua assessoria de comunicação.

Apesar das boas intenções, o programa foi criticado pela comunidade científica nacional à época de seu lançamento, por oferecer condições de trabalho superiores àquelas que estão tipicamente disponíveis para pesquisadores no Brasil. Além do valor das bolsas ser muito maior, os futuros repatriados terão direito a R$ 400 mil em recursos de capital e custeio (para comprar equipamentos e montar laboratórios, por exemplo) e até R$ 120 mil para viagens de trabalho, além de auxílio-saúde, auxílio-previdência e passagens pagas para retornar ao Brasil. (O valor das bolsas regulares pagas pelo CNPq no Brasil, comparativamente, é de R$ 2.100 para mestrado e R$ 3.100, para doutorado.)

Galvão disse que é natural que existam críticas e que o Conhecimento Brasil é apenas uma entre várias iniciativas que estão sendo implementadas para fortalecer a ciência no País. A ideia de dar continuidade ao programa já existia, segundo ele, mas foi reforçada pela atual situação da ciência nos Estados Unidos. “

Obviamente, muitos brasileiros vão pensar se querem continuar lá ou não”, ponderou o físico. “O cenário mudou completamente desde que nós lançamos o programa.” O CNPq também estuda, em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a possibilidade de criar um programa com o intuito de atrair professores dos Estados Unidos (brasileiros ou estrangeiros) para passar um período de um ou dois anos no Brasil. “Isso é um plano que eu espero levar adiante.”

Galvão também tem esperanças de aumentar o valor das bolsas de pós-doutorado no Brasil, que seria, também, uma forma de fomentar a repatriação e a fixação de pesquisadores no país. Para isso, porém, será necessário encarar uma situação orçamentária menos favorável: tanto o CNPq quanto a Capes perderam recursos no orçamento federal deste ano, votado pelo Congresso em 20 de março (R$ 77 milhões e R$ 300 milhões, respectivamente), apesar de os orçamentos gerais dos ministérios da Ciência e da Educação terem aumentado ligeiramente.